Coimbra 2011–10 anos depois #7
Saímos pela derradeira vez do soturno e puído balneário do Estádio Universitário de Coimbra, que desta feita servia bem o nosso estado de espírito, para o encore da época desportiva. Debaixo de um calor abrasador os bigodes imagem de marca derretiam com a dificuldade de segurar o suor que escorria como lágrimas de quem semanas antes tinha descido ao inferno num rude golpe de secretaria e de lá tinha subido a pulso para agora voltar a disputar um sempre agridoce último lugar do pódio. Da bancada sentia-se a falta do clamor e da emoção da meia-final, mas ainda assim era de lá que emanava o tónico de que precisávamos: muitos dos que de alguma forma tinham feito a sua parte nos treinos, nas corridas na mata, na Fátima, na noite, no banco ou em campo continuavam ali prontos para sofrer e incorporavam o estatuto homérico do plantel.
Com a camisola 9, habitualmente do injustiçado Torres, e com o número 13 do capitão Maia mesmo à minha frente pela pessoa do Cardoso, num 4–4–2 algo experimental, ficava a sensação de algo entre uma homenagem e um exame na segunda fase para melhorar a nota.
Ao ressoar do apito toquei a bola de JC para JC e arranquei para a área adversária, com as costas quentes de quem tem 10 enormes guerreiros logo atrás e a bola sempre a caminho. Pior do que jogar sem poder ser campeão é perder, mas a vitória que nos estava destinada não era desportiva.
Os 90 minutos que se seguiram foram tanto de experimentação quanto de estoicismo físico. Entrámos mais fortes e a controlar o jogo, mas a falta de frescura face a uma defesa de grande envergadura traduzia-se em dificuldades em criar perigo. A artilharia pesada, leia-se Esteves e Vasco Marques, estava determinada como nunca em lançar a velocidade do nosso Cardosinho e um dos melhores momentos do jogo surge com o próprio a passar um atestado de incapacidade motriz ao lateral esquerdo adversário e a desferir o clássico cruzamento-remate ao segundo poste que eu só percebi que não ia conseguir intercetar já em voo picado de pé esquerdo em riste. Com o passar do tempo degenerámos numa incaracterística animosidade e insubordinação tática inversamente proporcionais às nossas forças e o resultado final de 0–2 foi tão consentido quanto justo.
Formalizado o apito final carregámos o peso da derrota até à entrada do balneário que estava flanqueada por grande parte do plantel da época. O foco e a obstinação necessários para jogar 7 jogos em 5 dias, nunca como favoritos, sempre com as malas na carrinha prontos para voltar para casa, sempre contra tudo e contra todos, dissiparam-se e com uma clareza inesperada, entre abraços sentidos, viu-se nascer uma criatura mítica, um monstro de cumplicidade. Destiladas todas as adversidades, apurados todos os sacrifícios, constatada a superação, a soma das partes estava ultrapassada e apresentava-se ao mundo a essência de um grupo com a força ímpar para escrever o seu próprio futuro glorioso. De aspirantes a engenheiros talvez não fosse de esperar este substrato que não pode obedecer a regras, que não se planeia nem orquestra, que tem como ingrediente secreto a babélica conjunção das emoções e virtudes, mas não se pode subestimar o poder congregador do futebol nem o lendário encanto conimbricense.
A intensidade e privação dos últimos dias como atletas de alta competição tinha-nos preparado bem para o tempo que nos restava até regressar a Lisboa, mas o primeiro passo para uma boa celebração era encontrar novo quartel-general onde retemperar forças. Numa das inúmeras amostras da miríade de regalias de fazer parte da equipa, suplantando qualquer subscrição do Club Med, fomos deixar as malas e a exaustão ao que o nosso Bernardo Afonso batizou de chalé de ricaço, casa de família do nosso guardião Tiago Marques. Coimbra teria que esperar mais umas horas para finalmente ver a equipa em estado puro, mas ia valer a pena.
Uns breves momentos de descanso numa cama em que não ficava com os pés de fora souberam bem já que no quarto 317, onde tinha recebido o batismo de CNUs pelos futuros capitães de equipa Galão e Mariozinho, tinha sido obviamente relegado para a cama de criança onde era estrategicamente presa fácil do infame cheiro a falta de educação. Eventualmente a comitiva começou a acomodar-se aos luxos do chalé e estava, portanto, na hora de partir.
Essa noite começou com um aquecimento no pátio exterior da sede da AAC, palco das primeiras narrações e livre interpretação da nossa epopeia e de brindes aos golos, às defesas, aos cortes, aos números dos quartos e aos telemóveis desligados para as namoradas não telefonarem. Depois de evangelizados os prestigiados académicos de Coimbra sobre o nosso feito e de algumas trocas de barril propositadamente demoradas estava na hora de iniciar a titânica mobilização da equipa para a discoteca NB e garantir um final épico.
Descer aquelas escadas foi entrar noutra dimensão. No barulho das luzes roxas já voavam shots de tequilla e bandejas carregadas de flutes de plástico. Junto ao balcão, o Pirata, o Villas e o Maia pareciam brindar a uma passagem do testemunho. Logo ao lado atirava-se atletas e imperiais pelos ares. Ninguém naquela pista iria acreditar que tínhamos jogado o campeonato nacional universitário durante a semana porque até o sol nascer só deu técnico.
Passaram exatamente 10 anos desde aquele dia e o testemunho continua em perpétuo trânsito com um sucesso para lá de qualquer previsão otimista. Já dizia o Bill Gates que as pessoas tendem a sobrestimar o que podem atingir em um ano e a subestimar o que podem atingir em dez e assim foi. O tempo passou, as gerações sucederam-se, eventualmente chegámos a campeões regionais e hoje, já sem ninguém da turma de 2011, a equipa universitária é a maior potência do futebol universitário lisboeta. Entretanto muitos estiveram também na fundação do Técnico Futebol Clube, epítome da nossa mística dentro e fora de campo.
Passaram exatamente 10 anos desde aquela noite e todos recordam que no final das celebrações eu anunciei que precisava de mais umas horas em Coimbra pelas palavras: “malta, vou assumir”. Na verdade, o que se assumiu ali foi o facto de agora fazermos parte de uma família. Os amigos com que saí de Coimbra são os amigos com quem vivi muitos dos momentos mais marcantes da última década.
Sei que num futuro distante os ecos e as repercussões daquela época e daqueles dias suplantarão sempre qualquer projeção que possamos fazer, e talvez isso nos dê um alento especial pelo que passámos juntos, mas uma coisa é certa: seja qual for o destino do nosso legado ele vai ter sempre o brilho nos olhos daquela brisa crepuscular na Praça de República de Coimbra que apelava com o capitão à efemeridade de uma só imperial.
Texto por João Craveiro
11 titular: Tiago Marques, Daniel dos Santos, Carlos Esteves, João Festas, Vasco Marques, Jonas Pereira, Bernardo Madeira, Jaime Luis, João Rino, João Cardoso, João Craveiro.