Leiria 1–1 Técnico
Todos os que fazem parte da nossa equipa e todos os que nos acompanham sabem que boa parte da identidade da mesma se ajuda a construir através de histórias e experiências partilhadas, passadas de geração em geração. Por isso, do meu ponto de vista, seria difícil falar de Coimbra sem puxar o filme um pouco atrás e dar um pouco de contexto.
Três anos antes, no meu primeiro ano como jogador do Instituto, lográmos a conquista do Campeonato Universitário de Lisboa. Foi um ano incrível, de companheiros extraordinários dentro e fora de campo e coroá-la com o título, que há alguns anos fugia ao Técnico, foi absolutamente memorável. Essa conquista levou-nos ao Campeonato Nacional Universitário (CNU) de Aveiro.
Fomos para Aveiro sabendo que as coisas não seriam fáceis (os Nacionais nunca o são), mas expectantes e confiantes que, como campeões de Lisboa, teríamos uma palavra a dizer. Pois bem, chegados lá fomos batidos inapelavelmente: dois jogos, duas derrotas “limpinhas” contra equipas recheadas de jogadores federados e bilhete de regresso a casa garantido. Valeu nesse ano a prestação inacreditável de Gonçalo Valente e de Luís Vieira, que mostraram a todos o que é ser Técnico mesmo nas derrotas. Salvaram-nos a face por completo, devolveram-nos a honra e voltámos para Lisboa de cabeça bem erguida.
Após muitas saídas, entradas e regressos entre plantel e equipa técnica, onde durante duas épocas não conseguimos a qualificação para o CNU, três anos depois estávamos de volta, desta vez em Coimbra. No entanto, as perspectivas não eram propriamente animadoras.
Muito poucos jogadores do plantel tinham experiência nesta competição e, dos que tinham, em quase todos essa se reduzia à experiência “traumática” de Aveiro. Para além disto, circunstâncias da temporada ditaram que nos tínhamos qualificado como o 4º classificado do Campeonato de Lisboa (o último que dava acesso ao Nacional) e que já em Coimbra ainda teríamos de jogar uma espécie de “fase de grupos antes da fase de grupos”, ou seja, estávamos claramente a correr por fora.
Mas a principal razão para a nossa apreensão residia sobretudo no facto de que o paradigma de Aveiro não se havia alterado: o nosso futebol e a nossa identidade eram semelhantes aos de então, uma espécie de mistura (pouco) explosiva de catenaccio puro (vulgo autocarro) + Benfica de Koeman na Champions em 2006 + “bilha na frente”. Actualmente ao ver o Atlético de Simeone a jogar, penso se não terão visto vídeos do Técnico dessa altura. Atenção, que não haja margem para más interpretações: nós éramos bons a jogar assim, rigorosos e disciplinados. Simplesmente o pensamento que havia em muitos de nós era o de que enquanto esta ideia em Lisboa ia funcionando relativamente bem e até já nos tinha dado alegrias, nos Nacionais seria curto pois jogaríamos como sempre contra jogadores de campeonatos federados e com outro tipo de andamento.
Mas a esperança é a última a morrer… e afinal de contas, o Benfica de Koeman naquela Champions até tinha chegado longe.
Já em Coimbra, depois de um primeiro dia de competição com um empate e uma vitória pela margem mínima na tal “fase de grupos antes da fase de grupos”, qualificámo-nos para a fase de grupos “a sério”, onde iríamos defrontar Leiria e os nossos “amigos” de Direito.
Assim, ao segundo dia de competição, surgia o nosso terceiro jogo: o confronto com Leiria. Sabíamos que era um adversário forte e com bons registos em CNU mas honestamente não estávamos muito preocupados porque o resultado desse jogo não seria propriamente determinante: todas as nossas fichas estavam no jogo contra Direito no dia seguinte, adversário ao nosso alcance e com quem tínhamos sérias contas a ajustar. Basicamente ganhando a Direito, estávamos na próxima fase.
Portanto com Leiria o relato é simples: estávamos a perder por 1–0 e mesmo ao cair do pano bola na área deles, corte/ressalto para a frente e a bola sai para fora da área em zona frontal, percorre uns bons metros e fica a saltitar devagarinho, rente à relva… na direcção do Paulinho. Ora, o Paulinho já por si era possuidor de um grande remate e aparecer-lhe uma bola daquelas, tão perfeita, tão redondinha… aquilo era juntar a fome à vontade de comer e ele não se fez rogado. Estava a uns 30 metros da baliza mas podia estar a 3 ou a 300, aquela bola era para ele encher o pé todos os dias. E pronto, cá vai disto. Quando a bola sai do pé dele daria logo para levantar os braços e festejar. A bola vai sem efeito nenhum, trajectória completamente rectilínea a subir, a subir… daquelas bolas que ficamos com a sensação de que sairia do estádio e continuaria a subir indefinidamente… se não estivesse uma baliza pelo meio, claro. “Ângulo”, “gaveta”, “saco”, “ninho da coruja”, chamem-lhe o que quiserem. Foi aí que entrou, umas fracções de segundo depois de sair daquele pé direito. Possivelmente o melhor golo do Técnico que já presenciei, daqueles que todas as descrições ficam aquém da realidade. E que nos deixou numa posição muito confortável para o dia seguinte, onde um empate bastaria para passarmos aos quartos-de-final.
Resumir um jogo ao golo pode parecer redutor, mas falando por mim, a verdade é que dos jogos tenho boas recordações mas apenas pontuais. E isso acredito que seja porque no Técnico as conquistas dentro do campo, por muito boas que sejam, não se comparam às conquistas fora dele.
Posso não ter memória exacta de muitos lances, jogadas ou intervenientes, mas lembro-me como se fosse ontem dos nossos bigodes, do hotel Dona Inês, das conversas à janela com o 318 sobre piton de alumínio a ver filmes do Van Damme, dos pequenos-almoços nas pastelarias da frente, da imperial diária na Praça da República, do santuário do Villas no banco, de desejar a Direito boa viagem para Lisboa, das palestras do Pirata por Skype em que tinha uma cabeça que parecia saído do Blair Witch, dos passeios no parque, daquela sweat azul de qualidade duvidosa que envergávamos em todo o lado com o maior orgulho do mundo, do caminho para Taveiro de janelas abertas e música no máximo, da incursão do 317 à praia fluvial de dia e aos jardins da Associação Académica de noite (“Villas, estamos a chegar…”), de fazer check-out e novamente check-in no hotel no mesmo dia porque depois de ganhar tínhamos de ficar mais tempo, do “isto já não é físico, já não é técnico… isto agora é mental” para as câmaras de TV, do Pitbull do Setúbal dar um autógrafo ao nosso Pitbull (o verdadeiro) no hotel do lado, daquela noite incrível de despedida na NB, do chalet do Tiago “onde o diabo perdeu as botas”, da ida conjunta à praia fluvial e aos petiscos antes do regresso a casa… e quantas coisas mais. Foram dias de momentos fantásticos sucessivos e quem lá esteve entenderá na plenitude.
À partida de Lisboa, sabíamos que havia fortes hipóteses de voltarmos ao fim de um dia. No regresso a casa, tinha passado uma semana. E que semana.
Não conquistámos títulos, mas conquistámos algo maior. E esses momentos farão parte das nossas vidas e das nossas amizades para sempre.
Mário Dias — 317
11 titular: Tiago Marques, Daniel dos Santos, João Festas, Carlos Esteves, Vasco Marques, Tiago Alves, Jaime Luis, Bernardo Madeira, Vasco Nascimento, Carlos Estrela, João Cardoso